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Os grilhões da docilidade

Falei em outro post, há alguns meses, que faço aula de muay thai. Eu, gorda, com meus 80 e tantos quilos (francamente, hoje, não sei qual é meu peso), sou uma lutadora bem razoável, às vezes recebo até elogios dos mestres. Até uns mais inusitados tipo “você é uma carniceira!”

Muitas mulheres fazem aula junto comigo. Diria que no mínimo 70% das pessoas que estão na mesma turma que eu são mulheres. É bem aquele fenômeno de procurar atividades físicas alternativas à musculação e ergometria tradicionais das academias de ginástica para emagrecer e ficar com o corpo ~sarado~

(agora percebi que corpo sarado tá mais pra gíria idosa, mas eu não sei como os jovens se referem aos padrões de beleza atualmente, desculpem)

quer ficar sarada? não, obrigada, to de boa

Isso às vezes me torna um peixe fora d’água. Sabe aquele papo interminável de dietas? Nunca participo dele. Ou ainda quando querem te convencer de que um exercício pesadíssimo é bom: “pensa em como seu bumbum vai ficar durinho!”. Atualmente eu respondo esse tipo de coisa com “não estou aqui para ser miss, amiga, tô aqui pra dar porrada”. É sempre bom não tirar nossos próprios objetivos de vista mesmo com alguma pressão externa.

É realmente impensável que uma mulher gorda faça atividades físicas com outros objetivos além de emagrecer? Ou que eu realmente gosto do meu corpo pelo que ele é e faz? Que triste sina, a nossa, condenadas a odiar exatamente aquilo que torna nossa experiência no mundo possível.

E é engraçado como eu sou considerada “carniceira”, talvez porque eu não mostre a delicadeza que minhas colegas costumam mostrar. O que eu percebo em quase todas as mulheres que não estão acostumadas a lutar é sentir uma certa pena de machucar a outra pessoa com quem vc tá treinando. E isso não é errado, na verdade, porque ninguém está ali para se machucar e sair com um osso quebrado. Mas acho bem ruim que até praticando esportes de combate as mulheres tenham dificuldade para sair do lugar de fragilidade e docilidade que nos é relegado. Fico até um pouco triste quando as vejo assustadas na posição de se defender de um golpe ou morrendo de medo de machucar alguém. É como se as algemas do nosso gênero fossem indestrutíveis mesmo quando já estamos num papel que, em tese, nos obrigaria a sair dele.

Eu passei por isso também, mas superei essa pena inicial pois, como disse, não estou nessa vida para ser miss.

Pensei nessas questões neste momento em particular porque acabei de sair de um treino de defesa pessoal (dica para as meninas: façam). Calma, não tenho a menor intenção de usar os estrangulamentos que aprendi nem nada. Mas foi uma aula bem pesada, apesar de boa, e no momento estou com o punho cheio de hematomas. E eu os acho tão legais. São uma marca de que me dediquei hoje, assim como minha colega se dedicou, e que fiz algo satisfatório para mim.

Vejo outras marcas no meu corpo, algumas cicatrizes. E penso na capacidade maravilhosa do meu corpo de se regenerar e se curar. Assim como esses hematomas vão sumir, pois meu corpo vai dar um jeito de se recuperar. Cada marca dessas é um pedaço de uma história e de uma experiência única vivida pelo nosso corpo. No entanto, somos treinadas para odiar esse corpo e todas as marcas que ele carrega.

A quem serve um corpo sem história, padronizado, asséptico? Um corpo que não se mexe, que não aprende coisas novas, que não luta, não se diverte sem seguir inúmeras regras arbitrárias? A quem interessa que as mulheres tenham uma existência tão vazia?

Bom, não às próprias mulheres, é claro.

É por isso que sou feminista, pois acredito que é impossível ter uma existência plena enquanto estivermos aprisionadas ao nosso gênero. O gênero subalterno, frágil, dócil, irracional, aquele gênero que é ao mesmo tempo cuidador mas incapaz de mostrar autodeterminação, chegando a ser considerado legalmente incapaz pela legislação brasileira. Nós não temos absolutamente nada a perder nos libertando dos grilhões do gênero feminino, ao contrário, temos um mundo a ganhar (parafraseando um barbudo famoso).

Enquanto isso, vou ostentando hematomas ganhos em combate, cicatrizes das brincadeiras de infância que não deram muito certo (ou de tombos causados pelo álcool), manchinhas de sol que ganhei indo à praia ou fazendo campanha política durante horas em dias quentes. Não serei domesticada.

O ódio de classe em um país de brancos

Meus planos para o segundo turno eram assistir a porradaria com os pés para o alto e comendo pipoca.

auto-explicativo

Infelizmente, o sangue badernista fala mais alto e eu sinto a necessidade de deixar meus dois tostões no meio de tanto absurdo que está rolando por aí.

Já deixei claro por aqui que sou militante do PSOL, filiada e tudo, e fiz campanha durante 3 meses. Não sou antipetista, no sentido que este é um posicionamento de direita e esvaziado de conteúdo político (“malditos petralhas!”); afinal, tenho argumentos para ser oposição de esquerda ao governo federal.

E é muito curioso observar esse anti-petismo que assola a sofrida classe média brasileira, porque ele resvala num delírio que seria exagerado até para os anos da guerra fria. Às vezes é assustador também, como quando um companheiro de partido é agredido aos gritos de “vai pra Cuba, comunista!” – que ocorreu na cidade de Niterói, na reta final do primeiro turno.

vai pra Cuba, comunOPA, péra

Vejam o último vídeo caça-cliques da TV folha para entenderem melhor sobre o que estou falando:

Eu não sei se começo a rir ou chorar de quem acha a sério que o governo federal é de esquerda. Ou, melhor ainda, comunista. A minha avaliação é que um governo de esquerda não pode fazer alianças com setores reacionários como os ruralistas encabeçados por Kátia Abreu e com o PP de Bolsonaro (que é um crítico feroz da presidenta, apesar de seu partido fazer parte da base do governo). Um governo de esquerda não pode derrubar uma iniciativa para combater a homofobia nas escolas (“Meu governo não faz propaganda de opção sexual”. ROUSSEFF, Dilma. 2011), governar em aliança com o PMDB do Cabral no Rio de Janeiro, ter um ministério da saúde que não garante o direito ao aborto previsto em lei e ter um ministério da justiça que oferece aos governos estaduais, inclusive o de SP, toda ajuda necessária para reprimir manifestantes. Não consigo imaginar um governo de esquerda colocando o exército no complexo da Maré, inaugurando um estado de exceção oficial por lá.

Espero que tenha ficado claro que esta é uma avaliação de uma militante socialista: minha avaliação do governo federal passa por fatores que a direita ou despreza ou ignora. A avaliação de um direitoso delirante passa por achar que uma política de distribuição de renda como o bolsa-família é socialista, ou que o Brasil caminha a passos largos para se tornar um país socialista como a Venezuela (!) ou Cuba (!). O PT, segundo os cidadãos de bem que apareçam no vídeo lá da folha, teria inventado a luta de classes e a miséria no Brasil, a divisão entre brancos e negros, nordestinos e paulistas…

auto-explicativo de novo

auto-explicativo de novo

Que socialista iria aumentar a participação do capital estrangeiro em um banco estatal? Que socialista reclamaria que o Brasil é um país capitalista sem capital? Se o bolivarianismo diz respeito ao bolsa-família, falta avisar que programas de distribuição de renda foram recomendações de órgãos como o Banco Mundial no final dos anos 90 e começo do milênio. O que o PT fez no governo federal foi uma verdadeira conciliação de classes: com a distribuição de renda e a cooptação de lideranças sindicais e de massas, arrefeceu alguns conflitos, mas não acabou com nenhum deles. No entanto, faltou dizer que uma política que agrada patrões e classe trabalhadora não pode durar muito tempo – daí alguns índices econômicos desfavoráveis e a perda de apoio popular ao governo PT.

Em 12 anos, o governo federal não tomou nenhuma medida que sequer pareça de longe com socialismo. E eu não sei se os anti-petistas raivosos não sabem disso ou se fingem de desentendidos. Não é possível achar que um país onde pessoas saem da miséria e CONSOMEM mais é socialista.

Sabemos que desde meados da década de 1990 o Banco Mundial e outros organismos multilaterais, avaliando os efeitos sociais desastrosos das políticas neoliberais, implementadas segundo suas orientações nos países periféricos, passaram a recomendar políticas sociais mais incisivas, porém aplicadas de forma focalizada.

Marcelo Badaró Mattos

O problema é que o debate político está tão raso que ninguém dá a esse anti-petismo raivoso o nome correto. E o PT está tão comprometido com os patrões que não pode politizar a discussão. Não pode dizer que o que está acontecendo é um acirramento do ódio de classes.

Não que a maioria dos petistas não saiba que se trata disso – os xingamentos ao Lula por ser nordestino e operário não nos deixam mentir. Só que a maioria prefere dar um viés partidário a isso e mascarar novamente o conflito de classes. Como eu falei, as agressões sofridas por militantes do PSOL no período eleitoral mostram que o ódio não se restringe ao PT.

O ódio é por tudo que tem origem e defende as lutas da classe trabalhadora. O ódio é pelo PT ter nascido e conduzido por muito tempo as lutas da classe, o ódio é pelo PSOL ser um dos partidos que reivindica e compõe estas lutas agora. O ódio é por vislumbrar a possibilidade de a classe trabalhadora se organizar e transformar a sociedade.

Para ilustrar a diferença, uso as palavras de um petista. Lula diz que o ódio é porque a patroa e a empregada doméstica são capazes de comprar os mesmos itens de consumo. Percebam: a idéia é construir um mundo onde todas as classes são capazes de obter os mesmos benefícios do capitalismo, não um mundo onde as opressões de classe não existem. Essa é a conciliação de classes petista, que não pretende acabar com a exploração, apenas amenizá-la.

Eu sei como é importante acabar com a fome e a miséria extrema, especialmente para quem sofre com elas na própria pele (e é por isso que não critico o voto no PT que tem esta motivação). Fome e miséria são a face mais cruel da exploração capitalista e elas só vão acabar quando o próprio capitalismo for destruído. A crise econômica nos EUA e nos países europeus mostra que a exploração amenizada tem data pra acabar: sempre quando há crise econômica, quem mais sofre é a classe trabalhadora, que perde seus empregos, suas casas, seu direito à aposentadoria. Tudo que foi conquistado com muita luta dentro dos marcos do capitalismo está fadado a desaparecer quando é a sobrevivência deste sistema que está em jogo.

Essa é a face mais patética desse anti-petismo: odiar um governo que promoveu a conciliação de classes e teve papel fundamental em evitar o acirramento da luta de classes.

E ainda dizem que as escolas estão cheias de professores comunistas…

Não poderia encerrar esse texto sem chamar atenção para o caráter ufanista desse ódio de classes. A direita sabe muito bem o poder de um discurso que suprime o conflito de classes em nome de “salvar a pátria” do espectro comunista (beijo, Karlaum Marx). Usar as cores da bandeira e cantar o hino nacional cabem direitinho nessa pátria de colonizadores brancos, dos heróicos bandeirantes, que essa galera defende. Um país que até hoje mata indígenas para garantir o desenvolvimento econômico, um país que condena a população negra à miséria e à violência, só pode ser o país dos colonizadores brancos. Isto, infelizmente, nunca correu o risco de acabar.

A cilada Marina Silva

(Post escrito em Julho de 2013 com alterações feitas em Agosto de 2014 após a mudança provocada pela morte de Eduardo Campos)

Com as eleições de 2014 se aproximando, uma difícil pergunta fica no ar: em quem devo confiar meu voto no ano que vem? Pro governo do Rio e pro governo federal, o cenário das próximas eleições que vem se desenhando é sombrio.

Desde 2010, Marina Silva vem tentando se estabelecer como alternativa à presidência. E talvez ela até pareça uma escolha razoável, principalmente considerando todos os problemas do governo Dilma. Só que as aparências enganam. Neste texto, vou tenta provar que Marina Silva NÃO representa um projeto político diferente daqueles defendidos por Dilma Rousseff ou Aécio Neves e que, por isso, sua principal bandeira – o ambientalismo – não se sustenta.

É bom explicar primeiro a rejeição pela presidenta petista. Dilma Rousseff conseguiu, em apenas um mandato, retroceder em quase todas as discussões políticas que eu acho importantes. Passou com um trator por cima dos direitos indígenas, tem sido uma mãe para ruralistas e empreiteiras, entregou de bandeja os direitos LGBTs e das mulheres para a bancada teocrata estraçalhar; eu testemunhei seu desprezo pelos servidores federais em greve no ano de 2012, principalmente os professores (houve inclusive corte do ponto de diversos grevistas) e sofri na pele seu descaso frente à violência policial nas manifestações de Junho. Para garantir a copa do mundo, seu governo, através do ministério da justiça, equipou tropas das polícias militares, infiltrou gente da força nacional entre militantes do Rio e fingiu que não viu as prisões arbitrárias que ocorreram nesse estado. É um governo autoritário e que governa para empresários, não para a classe trabalhadora. Algo que era até bem previsível, na verdade, embora eu jamais pudesse desconfiar, em 2010, que o estrago seria tão grande.

Agora, praticamente todos os motivos que me impedem de votar na Dilma me impediriam de votar na Marina Silva. Não é segredo algum que Marina é uma conservadora, porém, é esperta a ponto de camuflar isso e parecer moderna ficando em cima do muro com suas propostas de plebiscitos para questões mais delicadas. E eu discordo radicalmente disso, pois acredito que direitos não devem ser objeto de plebiscito. Da mesma forma que é inaceitável fazer uma consulta popular para discutir, por exemplo, a legalização da tortura como método de interrogatório: isso é algo inaceitável, uma violação de direitos humanos. Não é discutível. Ou seja, um direito não deve depender da opinião da maioria para existir. Propor um plebiscito sobre direitos LGBTs e direitos reprodutivos é uma maneira de ficar em cima do muro e ter a certeza de que o lado que você apóia vai ganhar, já que a população brasileira é bem conservadora e não votaria a favor de nada disso. E é claro que quem propõe esse tipo de coisa é contra o casamento igualitário e a descriminalização do aborto: quem é a favor simplesmente diz que é. E luta para conquistar esses direitos. Ou seja, por ser mais hábil politicamente e conseguir se cobrir de um verniz mequetrefe de inovação, Marina é mais do mesmo.

Neste aspecto, portanto, Dilma e Marina estão empatadas. Não sei a opinião pessoal da Dilma sobre estas questões. Mas seu governo, até agora, sambou na cara de toda militância LGBT e feminista. E é só disso que preciso saber.

Em relação a outros pontos que citei lá em cima, como a conivência com a violência policial (principalmente nas manifestações de junho de 2013), intransigência com trabalhadores em greve e pouco diálogo com a base, não faço idéia de como Marina poderia ser pior que Dilma. Mesmo. No entanto, não daria o benefício da dúvida para Marina por um motivo muito simples: as duas governariam para as mesmas pessoas. Marina passou anos dentro do governo Lula, tendo plena consciência de que ele governou para as mesmas pessoas que Dilma governa hoje. Não tenham dúvidas de que Marina tomaria atitudes autoritárias se disso dependesse a estabilidade de seu governo e a continuidade de um projeto de poder ao qual serviram os governos PSDB e PT (e serviria um governo PSB/Rede).

Vejam só que singelo este trecho de uma publicação do gabinete de Marina quando ela era senadora e que ilustra isso muito bem:

“Foi-se o tempo em que a ‘turma do Chico Mendes’ e empresários – principalmente madeireiros – eram como água e óleo. As coisas amadureceram nos últimos 15 anos, o mundo girou, o Acre está mudando, a ‘turma do Chico’ chegou ao poder e pôde concretizar suas ideias. Aplacaram-se radicalismos. Viu-se que é possível negociar diferentes interesses com ética e conhecimento técnico. (…) Por incrível que pareça, há madeireiros, pecuaristas e petistas sentados à mesma mesa.”

Para quem tem dúvida, foi justamente essa história de “conciliar interesses” que levou o PT a ser o que é hoje. Marina, à época desta publicação era senadora petista – e não fez sequer uma objeção quanto a essa política conciliatória, pelo contrário. Falar de “aplacar radicalismo” como se isso fosse algo positivo. Não ir à raiz do problema (ou seja, ser radical) é justamente o que mantém as coisas funcionando sem mudar nada de forma concreta. É por conta de suas políticas de conciliação de que classes que o PT consegue manter uma fachada de partido dos trabalhadores, ao mesmo tempo que os bancos têm lucros recordes praticamente todos os anos. Mas nem sempre essa conciliação é possível. Quando isso ocorre, temos visto que os interesses dos grandes empresários sempre prevalece: basta ver que Dilma vetou um projeto de lei que garantia a igualdade de salários entre homens e mulheres nas mesmas funções sob o argumento de que seria impossível para o empresariado bancar isso. Ou, em níveis ainda mais extremos, todas as arbitrariedades e violações de direitos de populações indígenas e da periferia de cidades que sediaram grandes eventos. Garantir essas grandes obras a qualquer custo nada mais é que um compromisso com a classe que colocou o PT no poder através de financiamento de campanhas, por exemplo.

Chegamos então à outra bandeira de Marina Silva que eu considero problemática: o ambientalismo. Como se vê, Marina quer construir políticas ambientalistas que agradem não só à classe trabalhadora e aos povos que vivem das florestas, mas também madeireiras e empreiteiras. E isso é impossível. Quem diz o contrário, só pode estar mentindo.

E a Marina sabe muito bem disso. É por isso que seu discurso é tão em cima do muro, tão MODERADO. Porque ela sabe que seu projeto de poder em nada difere do projeto tucano ou petista, mas ela consegue construir uma fachada verde tanto por conta de seu histórico e quanto por seu discurso de “não ser nem de direita, nem de esquerda”. Esperta, ela sabe que muita gente repudia a direita identificada como PSDB, bem como a esquerda identificada como PT. No entanto, o que muita gente não percebe é que os dois partidos servem aos mesmos interesses – e é por isso que tanta gente os percebe como iguais (embora eu discorde dessa avaliação). Fugindo do espectro da esquerda e da direita, Marina consegue criar a ilusão de que é diferente. De que é possível fazer política em cima do muro.

Aí a gente cai naquela velha discussão: política é direita ou esquerda. Claro que classificar espectros tão amplos em duas únicas palavras é complicado, mas na política a gente não foge muito disso. Fazer política é se posicionar. Posicionar-se é ir pra um lado ou outro da coisa. E não se enganem: ficar em cima do muro é se posicionar também, mesmo que de maneira envergonhada. Mas, adivinhem só: não é a esquerda que tem medo de se posicionar.

Marina tem sido esperta ao fazer isso, pois quer ganhar aquelas pessoas que não se identificam nem com PT, nem com PSDB, mas acham que eles são representantes de ideologias políticas opostas. Não são.  Duvidam? Busquem as declarações do presidente do Itaú (que teve lucro recorde no primeiro semestre de 2013) sobre o Lula e as declarações da senadora Kátia Abreu, líder ruralista no Congresso, sobre a Dilma (Kátia, inclusive, se filiou ao pmdb e incorporou-se de vez à base aliada).

E eu entendo que a Marina cai no mesmo erro. Porque você não pode defender o ambientalismo sem enfrentar setores do grande capital. É por causa do modo de produção e de consumo que o meio ambiente se encontra tão destruído. Reverter isso significa tirar o poder econômico de banqueiros, empreiteiras, mineradoras, latifundiários, montadoras de automóveis. E isso é nada mais, nada menos, que a esquerda. Das mais revolucionárias. E não dá pra ser revolucionário ficando em cima do muro. Eu acreditaria na Marina se ela desse nome aos bois e dissesse – aliás, dizer não, porque isso é muito fácil. Se ela mostrasse que está disposta a contrariar interesses de gente muito poderosa. Não é o que ela vem fazendo.

Só que eu também não vou cair na sanha governista de tentar barrar a candidatura da Marina Silva a todo custo. Porque, sinceramente, ela não é uma ameaça maior às minhas lutas do que Dilma Rousseff*. Tampouco é uma ameaça menor. É muito semelhante, embora seja hábil em disfarçar isso. Na verdade, eu quero muito que ela concorra às eleições e dê um baita sacode no PT. Porque eu acho que eles precisam disso. Precisam sentir que cuspir na cara de sua base tem um preço nas urnas, que é, afinal, o único objetivo que lhes interessa. Quero mesmo ver a Dilma Rousseff e sua equipe de governo rebolando para reconquistar a base dos eleitores petistas. Não que eu tenha esperança de vê-la governando para essa base, Dilma jamais vai fará isso. A esta altura, eu só espero que ela pare de pisotear nos direitos que conquistamos com tanta luta. Que ela não contribua com o retrocesso.

Daí fica a pergunta: se Marina não é boa e Dilma também não, o que é possível fazer? Em quem votar? A minha candidata é a Luciana Genro, do PSOL. Mas acho que minha defesa de voto merece outro post só pra isso.

(A fonte da citação da revista do gabinete da Marina Silva é este link: a rede de Marina Silva)

*Perceberam que me recusei a mencionar possíveis candidatos tucanos? É que essa desgraça jamais foi realmente uma opção pra mim, portanto me reservo o direito de ignorá-los quando falo de minhas visões políticas.

manifesto pelo fim do ódio a nossos corpos

Eu vou ser bem sincera: não gosto muito desse termo “gordofobia”. No entanto, acho importante que a gente tenha uma forma de identificar esse ódio por gente gorda. Na minha opinião, quem mais costuma sofrer por conta da aparência são as mulheres, então eu chamo é de misoginia mesmo (e tem um livraço da Naomi Wolf, clássico, sobre isso). Claro que homens gordos costumam sofrer também, mas, como eu disse, quem mais costuma sofrer cobranças quanto à própria aparência de forma geral são as mulheres. Por isso que, nesse texto, vou me referir mais a elas.

Daí que caiu um chorume absurdo na minha mão exatamente sobre o assunto e que deu um sentido completamente novo pra mim ao termo gordofobia. Ou eu que não tinha pensado por esse viés antes, mas enfim. É um texto que, do começo ao fim, fala do pavor da autora de ficar gorda. Pode ser um tanto exagerado só pra se tornar um texto mais interessante (dica: não é. É só doentio mesmo).

o horror, o horror

o horror, o horror

A moça fala de como tem ojeriza a ver uma gorda fazendo exercício. Não sei muito bem daonde saiu essa neura de que as pessoas precisam ser bonitas se exercitando. E, gente, nada contra, mas quem se importa? Se você faz atividade física pensando se está feia quando corre, nada, dança, transpira e sua respiração acelera, você simplesmente não se diverte. Não aproveita cada milímetro do seu corpo se movendo, se fortalecendo, alongando.

realmente, é impossível se divertir com qualquer coisa quando você se odeia tanto

realmente, é impossível se divertir com qualquer coisa quando você se odeia tanto

Não sei vocês, mas eu acho o máximo como meu corpo consegue se adaptar e fazer direitinho o que eu preciso que ele faça. E, não, eu não fico bonita no processo. Mas, olha, eu me divirto pra cacete. Não é o que importa? Pra mim, é o máximo como a cada dia eu consigo correr um pouco mais, aumentar o peso dos aparelhos, faço flexões e abdominais com um pouco mais de facilidade. Lembro direitinho que, quando comecei as aulas de muay thai, não conseguia fazer nenhuma flexão e um ano depois, faço várias séries (também acho incrível a criatividade das pessoas na hora de inventar flexões: já fiz uns dez tipos diferentes). 

Pra mim, essa é uma neura semelhante a ficar bonita fazendo sexo. Sim, isso existe. E se você se preocupa justamente com isso, é sinal de que alguma coisa tá muito errada.

Enfim, voltando ao esporte, esse senso de inadequação é um dos principais motivos pelos quais mulheres gordas deixam de fazer atividade física. Quem já foi adolescente gorda em uma aula de educação física sabe como é.

Algo bastante desagradável e opressor é que existe essa obrigação de pessoas gordas fazerem exercício apenas para emagrecer. Porque todo gordo tem que passar a vida SE REDIMINDO desse pecado e ai dele se fizer alguma coisa que gosta, mas não necessariamente leva à perda de peso.

tchau gordinha pena

prq alguém se obriga a fazer algo que odeia? pra não ter o destino terrível de ficar gorda, claro

É claro que podem existir recomendações médicas para uma pessoa perder peso, da mesma forma que uma pessoa gorda pode ser absolutamente saudável – peso corporal não é, nem nunca foi, um bom indicador de saúde. Mas, como eu falei ali em cima, fazer exercícios pode trazer um prazer absurdo para uma pessoa, basta ela achar algo que lhe dê prazer. E é muito difícil curtir o que você faz quando você presta atenção na sua aparência (estou feia? descabelada? minha bunda tá esquisita nessa roupa?), nas calorias gastas, nos centímetros de barriga e braços e pernas que vão embora ou que chegam, enfim, quando você presta atenção em tudo menos na atividade que você está fazendo. É impossível ter prazer com esportes quando existem essas cobranças absurdas nas nossas cabeças.

Minha recomendação pra quem é gordo, quer fazer atividade física, mas não se sente com coragem pra começar, ou muito desestimulado porque pensa nessa galera que vai te olhar na rua e, apesar de não te conhecer, vai sentir PENA de você por ser gordo e fazer exercícios: meus amores, vocês não estão nesse mundo pra agradar ninguém além de vocês mesmos. Parece auto-ajuda barata, mas (por experiência própria) pouca coisa é tão libertadora quanto perceber que essa cobrança para que sejamos agradáveis, principalmente no que diz respeito à estética, é só mais uma forma de controlar nossos corpos. E, portanto, somos capazes de destruir essa ideia. Vai ter gente que vai te achar horrível, vai ter gente que vai ter achar linda – e nenhuma dessas pessoas tem absolutamente porra nenhuma a ver com a sua vida. Confiem em mim quando digo que o prazer que nosso corpo nos traz é maior do que essa gente escrota. 

Nem sempre é fácil botar isso em prática, eu reconheço, mas a gente precisa fazer um esforço diário. Não é fácil destruir o ódio que uma sociedade inteira nos ensinou a ter.

Aí entro no segundo ponto complexo desse texto chorumento. Nas palavras de Naomi Wolf:

“(…) existe uma subvida secreta que envenena nossa liberdade: imersa em conceitos de beleza, ela é um escuro filão de ódio a nós mesmas, obsessões com o físico, pânico de envelhecer e pavor de perder o controle (…) a ideologia da beleza é a última das antigas ideologias femininas que ainda tem o poder de controlar aquelas mulheres que a segunda onda do feminismo teria tornado relativamente incontroláveis”

Por isso eu falei que a gordofobia tem muito mais a ver com misoginia do que a gente costuma admitir. E isso tá muito presente nesse texto chorumento. A autora tem um verdadeiro pânico de engordar porque isso vai torná-la uma pessoa imprestável, infeliz, que precisa se esconder patologicamente. É um tal de usar roupas que disfarçam os braços, a barriga, as coxas, isso e aquilo… E ninguém nunca me respondeu adequadamente porque uma pessoa gorda precisa esconder seu corpo para ser agradável. Esse trecho é um bom exemplo de muita coisa errada:

braços

 Como eu disse, ninguém tem a OBRIGAÇÃO de agradar outra pessoa. Se alguém não gosta da aparência do seu braço, a única resposta razoável que se pode dar é ¯\_(ツ)_/¯ ou um murro na cara do/da infeliz (e, ó, meus brações são um bocado fortes). Mas vejam a quantidade de infelicidade que existe nesse texto. “Quem sou eu para não gostar de cara de regata?”, descontando a baita futilidade, nada mais é do que “quem sou eu, gorda, para rejeitar alguém?”. Porque existe essa idéia de que gorda não pode ter auto-estima e deve se contentar com qualquer um que fizer o favor de se interessar por ela. E, infelizmente, é fácil para uma pessoa que se odeia aceitar engolir um monte de desaforo porque acha que não consegue algo melhor.

continuo me escondendo

 É um texto impregnado de ódio e uma compaixão muito torpe. Olha, quem é gorda sabe a chateação que é pra arranjar roupa, a patrulha constante de amigos e família, as intermináveis discussões sobre dietas, perda de peso, você vai comer MAIS UM pedaço de bolo?, enfim. O que não faltam são notícias de como o bullying motivou alguma mulher a perder dezenas de quilos em alguns meses. E eu não sou o tipo de pessoa que sai enfiando o dedo na cara da galera que faz dieta e exercícios buscando emagrecer porque ela tá traindo o movimento adiposo. Mas é perfeitamente possível perder peso sem se odiar. Esse que é o grande problema. Existe muita gente lucrando com o ódio que sentimos de nós mesmas – daí a compaixão que essa autora sente das mulheres gordas que fazem exercício, porque enfiam nas nossas cabeças que não existe gordo feliz, saudável, que sente prazer em fazer esportes e que não está absolutamente obcecado em diminuir algumas medidas.

Sinceramente? Não tenham pena de mim, com meus 80 e tantos quilos (e 1,65m de altura). Eu é que tenho pena de vocês, mesmo sem saber quanto vocês pesam, porque vocês se odeiam tanto. Todo dia, eu busco me manter saudável. E é por isso que sou perfeitamente capaz de ir pra academia, almoçar salada, beber cerveja e comer pizza com os amigos no mesmo dia. Porque tudo isso me faz feliz. Mesmo que o mundo acredite que nós, gordas, sejamos incapazes disso.

Somos capazes de muito, muito mais do que nos dizem.

(e podem ir pra casa do caralho você e essa piedade ridícula)

Íntegra do texto no encurtador de chorume

Aqui um texto legal sobre esse tipo de gente escrota, os babacas fitness

Esse corpo te pertence, sim. Cuide bem dele!

E um site bacana que incentiva mulheres a não se odiarem (em inglês)

lulu e a tsunami de male tears

Foi feita a versão brasileira de um aplicativo muito popular nos EUA: o lulu. ele permite que você, mulher, avalie seus ex-namorados, ficantes, amigos, enfim, os homens que você conhece e estão no seu facebook. Mais detalhes aqui. E tá rolando muito debate sobre o EMPODERAMENTO que esse aplicativo promove, sobre a ética de falar detalhes privados sobre os homens da nossa vida etc. etc. Eu estava evitando formar uma opinião sobre isso porque… Gente, é só um aplicativo. Mas mesmo assim vou deixar minha opinião breve aqui sobre os pontos principais desse negócio.

O LULU É EMPODERADOR! Não, gente. Não é feminista inverter os papéis tradicionais e objetificar os homens. Não é empoderador empurrar aos homens o papel subalterno que sempre coube às mulheres – guardadas as devidas proporções, é claro. Meu feminismo busca igualdade, não um mundo em que homens tenham a possibilidade de ser cidadãos de segunda classe.

E existe algo ainda MENOS empoderador nesse aplicativo: ele só reforça os papéis de gênero tradicionais para homens e mulheres em uma relação heterossexual. Por exemplo, um dos quesitos avaliados é ambição (ou seja, se o cara pretende ser rico no futuro. Quanto maior a ambição, maior a nota geral). Entre os atributos positivos estão “paga a conta”, “deixa as inimigas com inveja”, “homem de uma mulher só”; entre os negativos, “só pensa em sexo”, “mora mal” e “tem amigas demais no facebook”. Ou seja, um festival de bobagens que só serve pra nos colocar de volta em papéis de gênero estúpidos e reforçar a monogamia obrigatória. Tudo que o meu feminismo busca destruir. E me preocupa que vejam isso como algo empoderador.

NOSSA GENTE QUE VULGAR MULHER FALANDO DE HÔMI. Minha gente, o lulu só escandaliza quem acha que mulher é assexuada ou só quer saber de fazer amor, que vê o sexo como uma barganha afetiva, coisa assim. Não, amigo,  a gente quer sexo gostoso e vai avaliar se tu fode bem. E vai comentar com as amigas no bar, no inbox do facebook ou no whatsapp. Mulheres gostam de sexo e falam sobre sexo. Lidem com isso.

O LULU VAI GERAR BRIGAS ENTRE CASAIS FODEU CABÔ RELACIONAMENTOS. Se vocês pararem pra pensar, os critérios de avaliação do lulu são extremamente bobos, não rola uma putaria pesada e a identidade das avaliadoras fica sempre em segredo. Enfim, se você se incomoda de saber que teu namorado/marido teve outras mulheres na vida, ou que outras mulheres desejam seu namorado/marido, você vive em algum filme da Disney.

COITADO DOZÔMI TUDO REVOLTADO E OPRIMIDO. Nossa, gente, sério que vocês querem igualar um aplicativozinho de celular a 5000 anos de patriarcado?

Serei sincera: é muito engraçado ver os homens revoltados quando entendem que estão sendo tratados como… mulheres. Não é legal, né? Imagina passar a vida toda assim. E ser responsabilizada quando isso acontece – afinal, quem mandou colocar aquela roupa? Quem mandou ser piranha? E não adianta tentar ignorar porque não importa o que você faça, o mundo coloca na tua cabeça que a avaliação masculina é essencial pra tua vida. Imaginem vocês, adolescentes inseguros, evitando sair da sala de aula no intervalo pra não passar por um corredor de homens três vezes maiores que você fazendo comentários em voz alta sobre a sua aparência. Imaginem ter homens maiores e mais velhos que você falando merda no teu ouvido e passando a mão no teu corpo sem você ter vontade. Sério, imaginem essa merda desde que você é pequena. Pois é,  dói. ISSO é objetificação e ela sempre vem mais violenta quando o alvo são mulheres. Tentem usar essa indignação por causa de um aplicativo que vai perder a graça em meses para ter EMPATIA pelas mulheres. Eu juro que não dói.

EU SOU MUITO OPRIMIDO GENTE

Me acordem quando criarem um aplicativo que explane informações realmente importantes sobre os hômi: quem são os estupradores e agressores por aí. Enquanto isso: parem de choro. vlw flw

Dia da Consciência Negra

O dia da consciência negra celebra a luta do povo negro no Brasil. Uma luta que desde sempre foi apagada, colocada em segundo plano, invisibilizada. Este processo de apagar a luta dos negros por cidadania e igualdade no Brasil prossegue e se fortalece a cada questionamento do tipo: “ué, por que não pode existir o dia da consciência branca?”.

Essa pergunta cretina já mostra que nós, brancos, não queremos largar o holofote da sociedade por nada. Nem que pra isso tenhamos de fingir um histórico de luta contra uma opressão que nunca existiu.

Quem conhece um pouco de história sabe que nenhum argumento sustenta tamanha burrice. Acho que não preciso relembrar os séculos de escravidão, a exclusão que veio com a república, as diferenças salariais, educacionais. Os números da população carcerária e o genocídio que é promovido contra a população negra nas periferias.

Quem é branco não tem consciência da própria cor porque ela não muda em nada a vida da pessoa. A cor da minha pele não carrega séculos de opressão, exclusão e violência. A cor da minha pele não me obriga a provar que não sou bandida. A cor da minha pele não merece orgulho, pois nunca fez parte de uma identidade desprezada e vista como inferior, marginal, enfim, nunca me obrigou a lutar por nada.

Se for pra ter consciência branca, que seja a consciência da vergonha. Porque aceitamos a brutalidade da escravidão e a miséria das favelas por tempo demais. Aceitamos a brutalidade do passado e lavamos a mão no presente, afinal, “isso já passou, somos uma democracia” e nos recusamos a encarar as feridas abertas da sociedade.

Ao invés de lutar contra uma opressão que não existe, deveríamos refletir sobre a dívida histórica, as feridas abertas e admirar os séculos de luta da população negra. Caladinhos, de preferência, que é pra não passar vergonha fazendo pergunta cretina.

* * *

E é claro que minha pequena homenagem para o dia de quem construiu a identidade do Rio de Janeiro, esta cidade que tanto amo, só poderia vir em forma de samba.

A criminalização é uma questão de tempo

Junho acabou, mas continua reverberando no Rio de Janeiro. Tanto nos atos, manifestações, passeatas e quebra-quebras, quanto na truculência que sofremos. Chegamos a outubro de 2013 e ainda sentimos toda a força do aparato repressivo do Estado.

Os principais protagonistas deste momento são os profissionais da educação do estado e do município. Depois de encerrar uma greve que teve início em agosto, os profissionais tomaram uma rasteira do prefeito (que enviou para a câmara um plano de cargos, carreira e remuneração que não contemplava as demandas da categoria) e a base retomou a greve. Após ocuparem o prédio da prefeitura por algumas horas, a categoria ocupou a câmara de vereadores para impedir que o tal plano fosse votado. Foram expulsos debaixo de porrada pela PM, que sequer tinha uma ordem de reintegração (desnecessário dizer que, mesmo se existisse tal ordem, a truculência é inaceitável). Era a madrugada de um sábado e o próprio comandante da PM disse que seguia ordens de um parlamentar para esvaziar a câmara e possibilitar a retomada dos trabalhos. Dois dias depois, a PM novamente expulsou com truculência uma manifestação em apoio aos grevistas que ocorria na cinelândia. E na terça, dia 1º de outubro, um verdadeiro aparato de guerra garantiu que o projeto do prefeito seria aprovado: as ruas do entorno da câmara foram interditadas pela PM, as galerias da câmara estavam vazias; lá fora, a polícia militar deu seu costumeiro espetáculo de violência por mais de 10 horas contra os manifestantes.

Jato de spray de pimenta nos manifestantes. Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2013.

Eu estive na cinelândia na segunda-feira, mas dei a sorte de sair antes que a polícia caísse de porrada em cima dos manifestantes. Ouvi uma manifestante no carro de som repudiar as revistas arbitrárias da PM: “não precisa revistar ninguém! Nós não somos vândalos, não somos bandidos! Não precisa nos revistar!”

Isso me lembrou outro momento crítico da repressão em nosso Estado: a prisão dos administradores da página black bloc RJ. Ela ocorreu pouco antes do sete de setembro, cumprindo ordens da Comissão Especial de Investigação de Vandalismo (CEIV, criada pelo Cabral depois do quebra-quebra no Leblon e que foi revogada no final de setembro). Desde a criação da comissão até a prisão dessas pessoas, todo o processo foi bizarramente ilegal. Todos eles foram presos sem mandado, após prestarem depoimentos sobre a operação de busca e apreensão ocorrida no meio da madrugada. A polícia só tinha mandado de apreensão de equipamentos eletrônicos, mas apreendeu artefatos perigosos como máscaras, livros anarquistas e comunistas, canivetes e facas. Tudo devidamente registrado pela mídia, que é pra dar o exemplo.

A operação foi tão ridiculamente ilegal e infundada que todos eles foram soltos em menos de um mês. Assim que saíram, os rapazes e suas famílias foram convidados a falar sobre sua experiência. A mãe de um deles, muito emocionada, falava o tempo todo que a polícia não podia ter agido daquela forma, pois seu filho “não era um bandido”.

E eis o problema. Ao contrário do que gostaríamos de acreditar, esses rapazes tiveram o tratamento usualmente dispensado aos bandidos porque eram bandidos. Porque é isso que a repressão faz: transforma aqueles que ousam levantar a voz e lutar em bandidos.

Em geral, a maneira desumana como o Estado lida com seus bandidos não incomoda boa parte da população porque esta sabe que não é alvo. De que me interessa se a polícia entra sem mandado na casa de favelado, no meio da noite? Alguma essa pessoa aprontou, senão a polícia não estaria lá. E, se a pessoa é inocente, fazer o quê? É o preço que se paga para manter a ordem.

É por isso que a forte repressão saltou aos olhos nos protestos de junho, porque ela desceu o morro e foi pra avenida. Quem faz ativismo sabe que a PM nunca tratou manifestante com civilidade, mas tudo mudou quando outras pessoas, até então desacostumadas com essa conduta, se tornaram o alvo.

O Estado, atendendo a interesses particulares, elege seus alvos e transforma todos em bandidos, vândalos, conforme o momento político pede. É comum voltar a atenção para a polícia militar, afinal ela é o braço armado disso tudo. Mas todos os poderes servem para isso. Servem para esmagar quem está no caminho, quem é o incômodo da vez. E isso só é possível porque naturalizamos isso. Reproduzimos e damos aval aos discursos repressivos quando se trata de criminosos (de fato ou, mais perigoso ainda, em potencial). Então, se a PM esculacha o morador de favela, isso não é problema nosso. Se o Estado trata a população carcerária da forma mais desumana possível, isso não é problema nosso.

Só existe uma certeza nisso: quando esse discurso é reproduzido e quando essas práticas ganham aval da população, tornando-se a norma da sociedade, é só questão de tempo para que todo mundo vire bandido.

democracia capitalista

De pé, ó vítimas da ordem

Na semana passada, a ALERJ aprovou e o governador Sérgio Cabral sancionou a absurda lei que proíbe o uso de máscaras em manifestações políticas. Como no Rio tudo (começa e) acaba em Carnaval, foi marcado um baile de máscaras como protesto contra isso. O baile contou com a presença do ótimo Bloco do Nada Deve Parecer Natural. Marcado para acabar às 22h, os presentes no baile conseguiram convencer a guarda municipal a prolongar a festa. Animadas, algumas pessoas seguiram para o Palácio Guanabara e ocuparam as escadarias do lugar, que contava com 4 oficiais da PM para fazer a segurança.

Eu fiquei no bloco até as 22h. Cheguei em casa pouco antes de meia-noite e só aí fiquei sabendo disso tudo. Morri de inveja de quem ainda estava lá. Mas fiquei muito feliz pelo sucesso que a festa em praça pública teve.

Aí eu acordo e descubro que não apenas foram reclamar do barulho até mais tarde  no evento do baile no facebook, como as pessoas que foram até o palácio Guanabara vão responder criminalmente por isso.

A notícia chega a ser engraçada, embora de um jeito trágico. Cidadãos responderão criminalmente por invadir um prédio que é público. Tudo que fizeram foi ultrapassar uma fita amarela que fica na entrada e subir as escadas. Alguns abriram as portas do prédio e entraram no salão. Não causaram um dano sequer ao patrimônio público, mas serão criminalizados da mesma forma.

Obviamente a tal preocupação com o patrimônio é apenas uma desculpa para assustar qualquer um que pretenda se levantar contra a ordem. Pra que nenhum engraçadinho tente dar abraço coletivo na PM e desmoralizar esta valorosa corporação de novo.

Mas o que me incomodou mesmo foram as pessoas reclamando do barulho. Entendo que isso pode não ser agradável. Mas, gente, vocês perceberam que o objetivo dessa festa era transgredir? Quebrar a ordem? Quem reclamou disso me deu a impressão de não entender muito bem o contexto do Rio de Janeiro – não só no que se refere às máscaras nos protestos e à criminalização dos movimentos sociais.

Já falei de como uma criança em um velocípede escancarou um discurso perverso que vem tomando conta da cidade. Esse incidente com o baile de máscaras fez a mesma coisa. Escancarou um discurso de amor e apego à ordem que só serve para tirar as pessoas das ruas. Uma cidade só fica em silêncio quando as pessoas não ocupam os espaços públicos. Uma cidade só fica em silêncio com seus habitantes dentro de casa, inofensivos à ordem.

E o Rio de Janeiro não é assim, porque a cidade é viva. É barulhenta, desordenada, porque é uma cidade que pulsa, é uma cidade vibrante. É uma cidade que pertence às pessoas – e é só por isso que no Rio colocam um bloco de carnaval na rua em pleno mês de setembro.

Tentar impor a ordem e deixar o Rio em silêncio é matar a cidade.

Por isso, é sempre bom lembrar que o Rio não pertence à guarda municipal, à PM, a quem ocupa os cargos do governo. As ruas do Rio pertencem às pessoas e nós vamos ocupá-las. Querendo os amantes da ordem e do silêncio ou não.

A ordem, quando existe para reprimir e excluir, deve ser desafiada e destruída. Mesmo que seja com música, afinal, esta é mesmo a cara do Rio de Janeiro.

A rebeldia de velocípede

Era apenas mais um dia normal no Rio de Janeiro quando o principal jornal local levou ao ar imagens de um menino descendo de velocípede o elevado Paulo de Frontin, uma via movimentada do Centro. A apresentadora chama atenção para o perigo que a criança correu ao brincar no meio dos carros, reclama de possível negligência dos pais e do poder público (nenhuma palavra sobre o cinegrafista que fez estas imagens e não pareceu muito interessado em ajudar uma criança que parecia correr tanto perigo). E o comentarista ao lado dela comete o ato falho do ano.

“A prefeitura já fez remoções, fez 2.000 acolhimentos de pessoas nesta área, mas elas sempre voltam porque não são obrigadas a ficar”.

Então temos que uma criança pobre brincando na rua é um problema social e a solução é remover as famílias mais pobres do Centro.

Acho meio indiscutível que aquela criança realmente estava correndo perigo naquela situação. Mas não é curioso como a gente naturaliza que as ruas (e, portanto, a cidade) pertencem aos carros? Que uma criança brincando em uma rua, por mais movimentada que seja, é um problema social?

Isso nos leva de volta ao começo de junho, quando as manifestações tinham o claro objetivo de reduzir as tarifas de ônibus. Com a expansão delas, a mídia foi esperta e preferiu ignorar esta pauta, que se tratava do direito à cidade. Éramos contra o aumento das tarifas porque cobrar caro (ou, na minha opinião, cobrar qualquer coisa) pelo transporte público é impedir que uma parcela significativa da sociedade tenha direito à cidade. A luta pela tarifa zero, por transporte 24h, dentre outras reivindicações, é isso. É lutar para que as pessoas mais pobres também tenham seu direito de ocupar os espaços públicos.

E esse menino sem querer escancarou a lógica que combatemos. Das pessoas que são um problema, algo a ser removido, escondido nas periferias. Da cidade que não é de seus habitantes, mas dos carros, dos investimentos, do lucro. Isso é especialmente importante para entender o contexto das revoltas no Rio. Há alguns anos, o Rio vem se tornando modelo de um balcão de negócios. Pobres em áreas de luxo? Remove. Tem favela no meio do caminho? Coloca a PM e diz que é pacificação. Tem espaço público dando bobeira? Privatiza, constrói estacionamento, constrói arranha-céu. Vende tudo para meia dúzia de empreiteiras organizadas em consórcios.

Éramos um modelo de cidade-negócio que se tornou um modelo de cidade rebelde. E estamos brigando para reconquistar o que é nosso.

 

 

Vocês não estão entendendo nada

Acho que não preciso apresentar o contexto dos Black blocs cariocas, que ficaram especialmente notórios após destruírem uma loja do Leblon (o horror! O horror!). Como o Rio de Janeiro continua indo às ruas exigindo uma CPI dos Ônibus séria, exigindo a renúncia do governador Sérgio Cabral, exigindo saber o que aconteceu com o Amarildo, dentre outras demandas, a repressão continua forte por aqui. É aquilo, quando você acha que a polícia se superou na truculência, ela te surpreende.

Os Black Blocs começaram a ser alvo de pesadas críticas. Começou com o PSTU, pelo menos um setor do PSOL fez coro. Tivemos a Veja, sempre ela, dedicando uma capa ao “bando dos caras-tapadas”. Sempre podemos contar com a desonestidade e falta de sutileza dessa revista, é claro. Mas aí tivemos a Marilena Chauí fazendo seu papel de revista Veja da esquerda e chamando os Black Blocs de fascistas em uma palestra para a Polícia Militar do Rio de Janeiro. Não tem como dar errado, Marilena, parabéns.

Repressão no Rio de Janeiro, 27 de agosto de 2013

E eu me sinto particularmente incomodada de ver os Black blocs sendo criticados por todo mundo. Porque é muito fácil criticá-los. É um grupo horizontal, heterogêneo, que nem adota uma postura política única. Resumindo, é um grupo que não tem como se defender. Ou alguém imagina que a PM vá abrir as portas para os Black blocs darem palestra por lá?

Uma das críticas feitas aos BBs é que esta tática não é eficiente, pois não contribui para organizar os trabalhadores. E isto é verdade. Talvez a perspectiva do enfrentamento com a polícia e do quebra-quebra não agrade à maioria dos trabalhadores que gostaria de participar dos protestos e até concorda com as pautas das manifestações. No entanto, este não é o papel dos Black blocs. E, de qualquer forma, eu não vejo a esquerda tentando organizar estes trabalhadores. No geral, os partidos e organizações de esquerda preferem se fechar em seus grupos e se limitar a conversar com quem já concorda com suas ideias. Há pouco diálogo entre os setores da esquerda, em sua maioria muito sectários, que dirá com trabalhadores que não estão organizados. É preciso fazer um trabalho de base que é cansativo, desgastante, que pode não render os frutos esperados. Mas se a esquerda não fizer isso, quem fará? É injusto exigir isso dos Black Blocs, pois esta responsabilidade não é deles.

Nas palavras de Leon Trotsky:

“Os reformistas incutem sistematicamente nos operários a idéia de que a sacrossanta democracia está assegurada da melhor maneira quando a buirguesia está armada até os dentes e os operários, desarmados. (…) Aos bandos do fascismo somente podem opor-se com sucesso destacamentos de operários armados que sintam atrás de si o apoio de dezenas de milhões de trabalhadores.”

(Trecho do livro O Programa de Transição)

Persiste a ideia de que a ação dos Black blocs é usada para justificar a violência contra os manifestantes. É inadmissível falarem isso depois de junho. Já esqueceram das fotos de manifestantes apanhando de joelhos, com flores na mão? Esqueceram da PM partindo pra cima de um milhão de pessoas na Avenida Presidente Vargas? Não caiam nesse papo.

Junho, em São Paulo

Junho, em São Paulo

Os setores conservadores da sociedade (inclusive a mídia e os próprios representantes eleitos) vão desqualificar as manifestações de qualquer jeito, como sempre fizeram. É esse o papel deles. Por que deveríamos nos pautar por eles? Se o trabalho de base fosse feito, não seria necessária tamanha preocupação com a repercussão que vem da mídia e dos gabinetes. Voltaremos aos desfiles ufanistas dos caras-pintadas cantando o hino nacional e exigindo a expulsão dos partidos?

sempre ela

sempre ela

A auto-crítica feita pelos Black blocs em si é muito positiva, principalmente considerando o quanto isso é raro na esquerda. Não gosto é do cenário em que ela se deu, com esses manifestantes sendo duramente criticados tanto pela direita (o que é esperado), quanto pela esquerda (destaque especial pra Marilena Chauí chauízando). Sinto um grande incômodo que isso tenha acontecido quando tramita na ALERJ um projeto de lei proibindo o uso de máscaras e qualquer coisa que sirva para cobrir o rosto nas manifestações. É inadmissível ter que lutar pra não perder um direito constitucional por conta de uma desculpa esfarrapada como essas. O nome disso é repressão. No momento em que se discute a desmilitarização da polícia, é necessário lembrar que a repressão vem por outros meios, por todos os lados, de formas mais sutis que uma cambada de fardados com (ah, a ironia) rostos cobertos e sem nome na farda que dispara contra a população desarmada.

jogo: ache o oficial do choque com o rosto descoberto

Se você ainda acha que a destruição de vidraças de bancos e vitrines de loja é usada como justificativa pra repressão. Se você acha que só vai com o rosto coberto pra manifestação quem já está mal-intencionado. Desculpa dizer, mas você não entendeu nada. Não entendeu o que significou junho, não entendeu nada sobre a repressão que enfrentamos nessa tal democracia, não entendeu o que significou a prisão de vários manifestantes no complexo penitenciário de Bangu. Não entendeu o caso Amarildo. Não entendeu as mortes na Maré.

Depois não vá reclamar que está sendo expulso das manifestações. Não vá reclamar que a esquerda foi pega de surpresa nas mobilizações futuras.

* * *

UPDATE: o Estado mostra as suas garras e lembra que é ineficaz concentrar esforços apenas pela desmilitarização da Polícia.

O tal projeto que torna crime cobrir o rosto em manifestações foi pro plenário na terça, dia 03/09, mas não foi votado. Porém, está previsto que seja votado novamente na terça que vem, dia 10/09.

No entanto, uma decisão judicial absurda teve o mesmo efeito. A partir de ontem, 03/09, a polícia militar pode conduzir para a delegacia qualquer pessoa que esteja cobrindo o rosto, para CADASTRAREM seus dados pessoais como nome completo, foto do rosto e impressões digitais.

Além disso, há notícia de que os administradores da página Black Bloc RJ no facebook receberam prisão preventiva, ou seja, vão aguardar o julgamento na cadeia. Detalhe: eles foram presos sem mandado para tal porque encontraram em suas casas… Facas.

É a criminalização escancarada dos movimentos sociais.

Embora as ofensivas tenham vindo do Legislativo e do Judiciário, é importante lembrar que estes dois poderes estão atendendo os desejos do poder Executivo. Foi o Sérgio Cabral, através da tal Comissão de Investigação de atos de Vandalismo, quem solicitou a aprovação da tal medida judicial.

Isso apenas escancara a podridão da democracia burguesa. Só pode ser ingenuidade achar que conseguiremos conquistas reais através dela, agora que ficou explícito como todas as instâncias da democracia servem a interesses particulares.

A OAB-RJ já se posicionou contra esta decisão. Agora é hora de ir à luta.